segunda-feira, 23 de abril de 2012

A carta de princípios da Veja, por Miguel do Rosário

O Cafezinho, por Miguel do Rosário
As garças não se sujam

(O Cafezinho traz análises de segunda a sexta. Publico neste domingo, porque não teve análise na sexta).
Gaudêncio Torquato publicou um artigo no Estadão discorrendo sobre o fio da navalha pelo qual caminhará Ayres Brito, presidente do STF, para conduzir o julgamento do mensalão. Termina citando um poema do próprio Ayres, que fala na habilidade das garças de caminhar sobre águas pantanosas sem jamais comprometer a alvura de suas penas. Esta habilidade, diz o poema, é recomedada aos juízes. Poderíamos estender o conselho ao jornalistas, que experimentam situações éticas ainda mais difíceis.
É justamente este o tema de uma longa e inédita carta de princípios divulgada pela revista Veja em seu site, que é um esforço de relações públicas com seu público para se defender das acusações de ser cúmplice do esquema de Carlinhos Cachoeira e Demóstenes Torres. A revista, afinal, sabia quem era Carlinhos Cachoeira; ao invés de fazer uma reportagem revelando ao Brasil quem realmente era o bicheiro, preferiu usar grampos clandestinos fornecidos pelo esquema para construir reportagens denúncias que pautavam a agenda política nacional. Ou pior ainda, a revista pactuava com mentiras, como o tal "grampo sem áudio", uma conversa entre Demóstenes Torres, então considerado um probo, um paladino da ética, e o Gilmar Mendes, presidente do STF.
Luis Nassif tem dado muito atenção a este episódio, que considera um dos casos mais emblemáticos em que a Veja, juntamente com toda a imprensa corporativa (que forma uma espécie de "cartel" político), jogou pesado contra as instituições de combate ao crime organizado, para benefício de um réu, Daniel Dantas, condenado a 10 anos de prisão pela Justiça Federal (decisão que ele conseguiu anular alguns meses depois).
Hoje pouca gente se lembra das circunstâncias. A mídia criou uma atmosfera pesadíssima de suspeição entre os poderes, produzindo uma verdadeira crise institucional entre o Supremo e o Executivo. Lula foi obrigado a demitir um dos funcionários mais brilhantes do governo, delegado Paulo Lacerda, que comandava a Abin. A medida foi considerada (é até hoje) uma das maiores covardias de Lula. Foi mesmo, mas Lula sabia pesar com muita perspicácia quando era o momento de recuar em prol da estabilidade política.
Esta CPI, ao analisar a fundo as ações do senador Demóstenes Torres, inclusive com a quebra de sigilos bancários, telefônicos e fiscais, poderá enfim esclarecer um dos episódios mais negros da história recente do jornalismo: teria a revista Veja e o senador Demóstenes inventado uma mentira de proporções bíblicas apenas para derrubar o diretor da Abin? Gilmar Mendes e Nelson Jobim teriam participado da operação?
Como não queremos ser injustos com ninguém, esperemos que os fatos tragam a verdade. Um dos personagens da trama, porém, o senador Demóstenes, perdeu toda a credibilidade, e este é um ponto relevante quando se pensa no episódio.
Por falar em Demóstenes, a imprensa hoje, com base em escutas da PF, traz a denúncia até agora mais pesada que eu já li sobre o senador. São conversas entre o senador e o prefeito de Anápolis, onde o primeiro faz um descarado tráfico de influência em nome da Delta. É o tipo de ação que supõe, certamente, o pagamento de propina pelo "serviço". Cada dia que passa, torna-se mais claro que Demóstenes Torres era um tremendo bandido, e os colunistas que elogiaram seu trabalho (atribuindo sua corrupção à uma espécie de loucura bipolar, ou dupla personalidade) terão que escovar melhor os dentes, porque as investigações revelam um político cujo principal objetivo era ludibriar o Estado.
Daí chegamos na Delta. Uma coisa que tem me impressionado na Dilma Rousseff é a sua sensibilidade em relação à imagem do governo federal no tocante à corrupção. Quando seus críticos na imprensa e nos partidos pensam que irão emparedá-la com alguma denúncia, ela aplica um drible de vaca e usa a crítica em benefício próprio. Aconteceu agora: colunistas vinham escrevendo a semana inteira que a relação da Delta com o PAC (a empresa tem contratos de 2,5 bilhões com obras da União) causara danos políticos ao governo federal. Gaspari publicou uma coluna bem ferina, chamando a Delta de Tia do PAC, em alusão à Mãe do PAC, ou seja, a própria Dilma.
Pois bem, quando todos imaginavam a presidente acuada, ou trabalhando para preservar a Delta, a presidente reuniu-se com a Controladoria Geral da União (CGU) e pediu uma devassa dos contratos entre a União e a construtora. Não quis nem saber se a ação causará atrasos em obras importantes. Ética em primeiro lugar. Esta é uma marca muito forte e muito pessoal de Dilma Rousseff.
Com isso, ela já tirou, de maneira até meio cruel, o único pirulito com o qual a oposição conservadora ainda dispunha para brincar de política: o discurso moralista. A direita ainda tem apoio na mídia, a qual agora faz de tudo para fazer os brasileiros se indignarem com o mensalão, um processo ocorrido há seis anos, que consumiu suficientemente o imaginário político nacional, e será devidamente julgado este ano. Mas a direita não tem mais apoio na sociedade, ainda mais agora, que viu como seu discurso moralista é falso, e mesmo criminoso. A mídia consegue de vez em quando pegar um petista de terceiro escalão com dólares na cueca, um outro recebendo um carro de presente de um empresário, ou praticando caixa 2 em campanha eleitoral, mas a direita ainda é campeã absoluta na produção de vídeos e áudios estarrecedores, que mostra seus nomes mais destacados (governadores e senadores) protagonizando felonias que fazem dólares na cueca parecerem um simples furto de chiclete do baleiro do colégio.

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